O terror da moral e dos bons costumes

Matheus Bomfim*


Odair José se auto denomina como “cronista social”, escrevendo músicas narrando sobre o cotidiano com bastante romantismo em suas canções, como em Eu, você e a praça (1973). Mas além disso, nosso Terror das Empregadas sempre foi um contestador. Seu exemplo mais conhecido desse tipo de música polêmica foi Eu vou tirar você desse lugar, 1972, canção em que o eu lírico declara seu amor para uma prostituta. Contudo, ainda em 1971, no seu segundo disco pela CBS intitulado Meu Grande Amor, temos a faixa Vou Morar Com Ela em que ele entoa:


O meu amor

Foi aumentando

Cresceu demais

E uma hora por dia

Já não resolve mais[...]

Não suporto mais viver longe dela

Não aguento mais, eu vou morar com ela

Não suporto mais viver longe dela[...]

Não aguento mais, eu vou morar com ela

Todo mundo acha que eu não devo ir

Minha família pensa até que eu enlouqueci

Que eu enlouqueci[...]


(Capa do LP Meu Grande Amor, fonte: IMMUB)


A letra pode parecer simples, mas devemos nos atentar a um detalhe, Odair fala que vai “morar” com a amada, e não se casar e constituir uma família como a moral vigente prega. Ele canta sobre o desejo de ter sua amada sem se preocupar com os dogmas sociais, mas ainda não foi dessa vez que Odair foi incisivo e chamou atenção da censura e da sociedade.

Em 1972, Odair lança um compacto pela CBS, continha a música Eu vou tirar você desse lugar, a famosa música sobre a “puta”:


Eu vou tirar você desse lugar

Eu vou levar você pra ficar comigo

E não me interessa o que os outros vão pensar


Assim como Eu não sou cachorro, não, de Waldick Soriano, essa música é uma daquelas que fazem parte do inconsciente popular, todo mundo comece a cantar se for tocada em uma festa. Foi com essa canção que Odair teve seu primeiro contato com a censura do Regime Militar, foi chamado para depor e explicar a letra, pois, de acordo com um militar presente em seu interrogatória, não era de bom tom o refrão “Eu vou tirar você desse lugar”, os militares acharam que era uma crítica velada ao governo. Foi aí que Odair explicou que a canção se tratava de um homem declarando seu amor para uma prostituta, não era nada com o governo. Foi aí que ouviu um “piorou”, que aquilo não era uma coisa decente para se cantar, e todas essas outras baboseiras moralistas. Foi a partir disso que Odair teve que submeter todas as suas músicas a uma censura prévia[1].

Odair questiona a moralidade vigente com essa questão, em que o modelo de família cristã prevalecia, na cultura cristã a imagem da mulher é associada à Eva, feita a partir e para o homem e ao mesmo tempo uma maliciosa que fez com que Adão comesse o fruto proibido. E a partir dessa mesma cultura existem dois exemplos de mulheres, a pura, a dona de casa, submissa ao jugo masculino, associada à figura da Santa Maria, e o segundo, a mulher insubordinada, a da rua, a prostituta, aquela que não segue o modelo estabelecido (Meis).

Com sua música, Odair mostra que essa mulher merece respeito e ser amada, que no final das contas o que importa é o amor e não interessa o que os outros vão dizer, como a própria música narra.


(Amsterdam abrirá sua primeira cooperativa de prostitutas em maio. Fonte: Heraldo)


Essa não foi única vez em que Odair foi alvo de censura, no ano seguinte teve sua canção Uma vida só (Pare de tomar a pílula) barrada pelos censores, lançada em 1973, no LP que leva o nome do cantor e compositor. Nela Odair conta a história de um homem que pede para sua esposa para de tomar o anticoncepcional e assim eles poderem ter um filho. Contudo, nesse mesmo período o Regime Militar desenvolvia um projeto de uso da pílula anticoncepcional entre as camadas mais baixas e não pegaria bem Odair cantando “Pare de tomar a pílula” para o mesmo grupo que o governo mirava o uso do comprimido[2].

Nesse mesmo LP temos a canção Deixe essa vergonha de lado, dessa vez a figura que Odair lança luz é a da empregada doméstica, a balada narra a história de uma moça que tem vergonha de seu lugar social, do seu emprego, ela é uma empregada doméstica e acha que por sua condição de subalternidade pode perder seu amor:


Deixe essa vergonha de lado!

Pois nada disso tem valor

Por você ser uma simples empregada

Não vai modificar o meu amor


Com essa música nosso artintelectual (Silva, 2017) fala da desigualdade social, de como ela pode influenciar nossos relacionamentos amorosos e ainda mostra como a empregada precisa ser respeitada, lembrando que só no primeiro governo de Dilma a profissão foi regularizada[3].

Com essa música Odair José ganhou a alcunha de Terror das Empregadas, acharam que ele só tinha a pretensão de cantar essas baladas com o objetivo de conseguir levar as empregadas para cama. O que importa é que ele fez sua parte em cantar sobre essa classe que, como tantas outras, é desvalorizada em nosso país. Suas músicas defendiam que para o amor verdadeiro não existiam barreiras de classe, pois quando o amor existe, não há tempo para sofrer.


* Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Grupo de Estudos História e Documento: reflexões sobre fontes históricas, pesquisa música brega no contexto da Ditadura Militar. 


[1] ODAIR José - A censura, a pílula e o filho de José e Maria| 50 anos de carreira| PARTE 3. Disponível em: https://youtu.be/LCxYytKyevU. Acesso em: 18 de maio de 2021.
[2] ODAIR José | MUSIC THUNDER VISION. Disponível em: https://youtu.be/6JRdNBWZN4o . Acesso em : 18 de maio de 2021.

[3] MATOSO, Filipe. Dilma assina regulamentação dos direitos das domésticas, diz Planalto. G1, Brasília, 11 de junho de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/dilma-assina-regulamentacao-dos-direitos-das-domesticas-diz-planalto.html. Acesso em : 18 de maio de 2021.


Fontes

DEIXE Essa Vergonha De Lado. Compositor: Odair José; Ana Maria. Intérprete: Odair José. Rio de Janeiro: Polydor, 1973. LP.

EU vou morar com ela. Compositor: Odair José; Rossini Pinto. Intérprete: Odair José. Ledor: Romântica. Rio de Janeiro: CBS, 1971. LP.

ODAIR JOSÉ | MUSIC THUNDER VISION. Direção de Luís Thunderbird. São Paulo: Music Thunder Vision, 2019. Color. Disponível em : https://youtu.be/6JRdNBWZN4o. Acesso em: 18 de maio 2021.

ODAIR JOSÉ - A CENSURA , A PÍLULA E O FILHO DE JOSÉ E MARIA | 50 ANOS DE CARREIRA | PARTE 3. Rio de Janeiro: Não Informado, 2020. Color. Disponível em: https://youtu.be/LCxYytKyevU. Acesso em: 18 maio 2021.

UMA VIDA Só ( Pare de Tomar a Pílula). Compositor: Odair José, Ana Maria. Intérprete: Odair José. Rio de Janeiro: Polydor, 1973. LP.

VOU tirar você desse lugar. [Compositor e intérprete]: Odair José. Rio de Janeiro: CBS, 1972. Compacto.


Referências

CARLA, de Meis. PROSTITUIÇÃO, MARGINALIDADE E CIDADANIA. [S.I], [s.n],[2006?]. Não informado.

SILVA, Jailson Pereira da; DUARTE, Ana Rita Fonteles; LUCAS, Meize Regina de Lucena. Dizeres sobre música e política no Brasil pós-64: o jardim da política e a arte em tempos de liberdade. In: DUARTE, Ana Rita Fonteles; SILVA, Jailson Pereira da; LUCAS, Meize Regina de Lucena. Dizer é poder: escritos sobre a censura e o comportamento autoritário (1964-1985). Fortaleza: Imprensa Universitária, 2017. Cap. 6. p. 111-123.

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