Pequenos aforismos sobre a escrita da história e seus conceitos?

 

Diego Bezerra Belfante*




I

Anima o historiador social a perspectiva que existe nas classes oprimidas, nos despossuídos do mundo, uma verdade que redimirá a humanidade. Mesmo sendo verdadeira essa noção, não cabe ao historiador a ingenuidade de acreditar que o povo inevitavelmente irá quebrar seus grilhões e fazer da terra o reino da justiça. Na verdade, como já bem colocado por Marx e Engels em seus escritos sobre ideologia, essa é geralmente a da classe dominante. E isso coloca um espinho na carne dos historiadores, esse espinho é um lembrete doloroso que a História não está dada. Há sempre que se estar atento para esse alerta na hora em que se escreve a História. Caso contrário, não se corre apenas o risco do susto, mas o da incompreensão da própria historicidade dos acontecimentos, quando o operário, camponês, ou qualquer outro excluído toma partido de seu opressor. Afinal, é sempre necessário lembrar: o povo não é como um rebanho de ovelhas à espera do pastor líder revolucionário.

 

II

A chegada do homem na lua pode ter sido o feito técnico mais audaz jamais feito antes e que levou a humanidade para onde ela nunca teria colocado seus pés. Mas não foi ela a maior encruzilhada que a espécie homo sapiens encontrou. Essa foi a chegada ao que hoje chamamos de América. Quando dois grupos de homo sapiens que nunca tinham se encontrado antes ficaram face a face com suas diferenças. Tal encontro marcou um novo capítulo na história da humanidade. Um que precisava de uma lógica para ser escrito. Não foi simplesmente a continuação de uma forma narrativa já existente. Diante desse novo e inédito mundo, o impulso de domínio, que está na raiz da formação do capitalismo, se fez mais forte. E com sangue foi escrita a história. Uma história de dominação e sujeição do outro. Esquecer que a escrita dessa história se fez, e por vezes ainda se faz, por uma lógica que colocou o europeu como portador da luz diante do ameríndio tido como o selvagem a se civilizar é esquecer a parte reacionária que dorme no campo da historiografia. É preciso, como um primeiro passo, desvelar e por nua a escrita da história e mostrar a quem ela serviu para que se possa exorcizar da escrita o desejo de controle e ordenação sobre o outro que ainda faz morada na escrita até mesmo de historiadores sociais comprometidos com os oprimidos.

 

III

A crença no progresso que guiava as ações dos grandes homens e posteriormente das nações ditas civilizadas foi usada como justificativa para as empreitadas neocoloniais e em boa medida não se distanciava da noção de levar a salvação para os ditos selvagens. Em ambos os casos exigisse que um outro fosse alguém desprovido da verdade. Semi-humano ou carente da graça, que precisava ser preenchido, não apenas da palavra, mas também por meio dela constituído. Durante muito tempo essa lógica foi absorvida pela historiografia. Essa narrava os grandes feitos dos grandes líderes e a corrida do progresso que as grandes civilizações tinham que empreender para transformar o mundo pela razão. Qual não foi a surpresa de muitos historiadores de uma tradição de historiografia diante dos horrores das Grandes Guerras. A ilusão do progresso caiu e as marcas de barbárie se tornaram visíveis até para os que não queriam vê-las. Tivessem disposto a enxergar que por debaixo da reluzente civilização com seus belos arcos de triunfo estavam milhares de corpos, daqueles que eram vítimas dos holocaustos coloniais servindo como alicerce para tais monumentos, talvez não fossem pegos de surpresa ao se darem conta que seu progresso de escrita era mais um nome da dominação e barbárie colonial.

IV

A certeza da vitória final contra o sistema capitalista foi a pedra angular de uma forma de marxismo. No final como o dia sucede a noite o capitalismo seria derrotado. E a humanidade por fim iniciaria a era que Marx acreditava ser a da História de fato, em detrimento a tudo que antecedeu, que seria assim a pré-história da humanidade. Muitos escreveram na certeza que o reino da promessa estava à porta. Bastava ser paciente e aguentar a caminhada rumo ao socialismo. Pois as leis do desenvolvimento social eram infalíveis e a sociedade sem classe uma realidade impalpável tal qual como o reino dos céus é verdade revelada para os cristãos. Essa visão de uma infalibilidade rumo ao socialismo criava a teologia perfeita. Pois o capitalismo provocaria seu próprio fim e, portanto, não seria necessário temor. A questão é que ao retornar os escritos de Marx, não como escrituras sagradas, e pensar assim sobre os escritos marxianos seria a heresia maior contra Marx. Tal noção teológica de ventos que sopram rumo ao progresso que leva ao socialismo não existe como certeza plena. Pois se o socialismo é uma possibilidade em Marx, a barbárie também é. Assim fica a pergunta: como fazer desse impulso de luta por um mundo justo uma mola motriz sem cair na armadilha que cria imobilismo na certeza da vitória? Pensar Marx não como manual e sim como crítico dos modelos sociais de sua época seria um começo. Trazer esse espirito crítico ao mesmo tempo que se abre para o outro deve ser também uma questão que gera desassossego do historiador na sua escrita.

 

V

A armadilha do progresso está sempre à nossa espreita. E com ela a força do capital que torna homogêneo aquilo que é heterogêneo. Nesse procedimento, a ilusão de uma revolução teórica faz com que seja acomodada de forma vazia de sentido as diferenças que constituem a experiência. O tempo se torna assim vazio, um mero seguimento de régua. Escapar desse tempo vazio é fundamental para o historiador. Escrever de forma que a diferença do outro seja não apenas enumerada, mas expressa só é possível quando o historiador se abre à experiência como fonte de vida. Quando ele faz de sua escrita um gesto ético político.

 

VI

A experiência precisa ser esvaziada e o tempo domado para que o capitalismo se imponha. Toda forma de experiência deve ser possível de ser feita mercadoria. Todo o tempo precisar ser o do relógio. Todos os desviantes devem ser formatados ou excluídos. Cabe ao historiador em sua escrita não esquecer: por detrás da aparente subordinação do tempo e da experiência, perceber que ali existe um rebelde.

 

VII

O poder do historiador vem da escrita. É a partir da escrita que constrói seu fazer. Não teria valor seu oficio se este apenas recolhesse fontes do passado. Na verdade, é pela escrita que ele organiza não apenas o passado, mas também a relação que as fontes possuem entre si e com o presente; é desse fazer que vem a força do historiador. Pois de um primeiro momento nada une em si as fontes, para além de serem de uma determinada época e/ou falarem um mesmo assunto. Mas a escrita não é apenas a organização das fontes e a criação de ligações. É também trabalho imaginativo de tentar fazer ver o que não é visível. É um falar sobre o outro que diz sobre si. É a tentativa de confortar as forças do passado. Pois passado seria o grande outro. A escrita da história é um lugar de poder que permite o historiador construir o outro. Mas será correto construir esse outro? Principalmente se esse outro é construído para ser domado? Pois a prestidigitação que faz surgir esse outro serve de ocultação do eu. Esse eu que se faz universal. Mas o outro emudecido pelo historiador retorna sobre a forma da incompreensão que perturba o sono do historiador.

 

VIII

Já foi perguntado o que faz o historiador quando fabrica a escrita da história, agora gostaria de perguntar quem é esse que escreve? Esse produtor do discurso historiográfico?  Quem é o historiador? Quem é esse eu que diz que escreve sobre a experiência humana no tempo? Ele escreve mesmo? Qual a posição do outro nessa escrita?

 

IX

A imagem do historiador muitas vezes é associada à figura de um senhor de óculos grossos enterrado em arquivos. Aqui ele está rodeado de documentos antigos amarelados pelo tempo, vez por outras um desses documentos está danificado, ruído por traças e com marcas da má conservação. Ele é o amante dos livros; um erudito. Assim figurando como portador do conselho sábio que traz a verdade dos tempos. Tal imagem seduz muitos historiadores. Crentes de que terão voz na sociedade por serem historiadores. Cabe ao historiador esperto perceber que a única voz que lhe será permitida nessa configuração será a que confirma o status quo.  

 

X

O famoso quadro Guernica do pintor Pablo Picasso é a síntese da escrita da história ocidental. Uma escrita de horrores e que busca trazer para o primeiro plano, mesmo que sacrifique a perspectiva ou a profundidade, todas as faces do horror que caminha pela face da terra. Nunca visão totalizante, mas que ao mesmo tempo se torna linear e plana, que traz para o presente as formas desfiguradas pela marcha da razão ocidental em sua ânsia de dominar todos os segredos do cosmo. Picasso pintou essa obra como denúncia e memorial da morte que a brutalidade da razão humana pode criar. O quadro é, portanto, testemunho da barbárie. Aqui a mesma denúncia é feita ao fazer da história que temos realizado. Como alerta dos grilhões que prendem sem serem notados a nós historiadores. Só o historiador que se permite ser comum e comungar na viagem pode escapar. E assim cantar e bailar congregado com todos. Pois se a memória do horror nos traz o pranto, o legado dos sonhos e possiblidades perdidas anima o historiador à luta.

 

XI

Há muito que o anjo da História reflete sobre o horror de uma história marcada pela tragédia, mas por mais que deseje desfazer o caos que o Ocidente construiu como História, ele não pode. Não apenas porque os ventos do progresso sopram incessantemente, mas devido também à lógica racionalista que tudo dividiu. Assim, até mesmo o historiador social cai na armadilha de Descartes. E separa em sua escrita aquilo que não devia estar separado. Cultura, Raça, Classe e Gênero quando separados parecem facilitar a análise. Mas na verdade enevoam a incompreensão. E se o historiador não for atento a essa metodologia que disseca, pode fazer crer que essas contingências não apenas não têm relação como não se comunicam entre si. De fato, é possível adentra na pesquisa e na escrita por qualquer uma das facetas que compõe a vida, mas é necessário manter sempre a noção que está tudo interligado. A vida não se faz em partes.

 

XII

A separação do mundo criou esferas que parecem autônomas. Nessa lógica é possível estudar Raça sem fazer menção ao Capitalismo, como se a construção das raças não tivesse ligação com as configurações que essa possui e com a dinâmica de produção capitalista. O mesmo pode ser dito sobre Gênero e suas relações com a Política. Não dizemos que são meros espelhos um do outro. Não, essas categorias estão mais para corpos celestes cuja gravitação de cada corpo afeta os demais. Assim, os arautos do capitalismo, em sua missão de pregar o evangelho do consumismo, tentam ocultar um corpo celeste gigantesco, fazendo subsumir do discurso que fazem, de seu mundo de maravilhas, de terror, o asteroide pronto para provocar mais uma extinção em massa. Mas cabe ao historiador notar que esse corpo celeste ocultado deixa rastros, que podem ser percebidos por meio da força gravitacional que exerce sobre os demais. Da mesma maneira, os outros corpos celestes visíveis exercem atração sobre nosso objeto oculto. E por meio desse cabo de guerra cósmico podemos explicitar a existência negada desse corpo celeste.  A Classe!

 

XIII

Foi dito aqui nesse texto que a face do historiador é vista pela sociedade como a de um rato de arquivo que tudo sabe. Mas sua face é, ao meu ver, mais parecida com a do homem que aparece no famoso quadro de Edvard Munch. Sua face é toda consternação, toda surpresa. Essa é a face do historiador ao descobrir que as fronteiras do passado estão sempre em movimento. Ele tem as feições que são uma mistura de êxtase, pavor, horror e quem sabe de um pouco de esperança.


Possui Licenciatura em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) foi bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) da Universidade Federal do Ceará (UFC) entre os anos de 2012 e 2015, é membro do grupo História e Documentos: Reflexões sobre fontes, do Diretório de Pesquisa do CNPq. É Mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente está cursando o curso de Doutorado em História pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). Possui interesse em História do Brasil, Cultura Brasileira e Afro-Brasileira.

Comentários

  1. Um texto altamente reflexivo sobre a escrita do historiador e seu papel social, com muitas referências interessantes. Texto incrível, para ser relido, sem dúvidas. Parabéns ao escritor historiador, Diego Belfant!

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