A LITERATURA DE CORDEL COMO FONTE HISTÓRICA


KARINA MELO*


Considerados como uma prática cultural que constituem um conjunto complexo do repertório social e cultural do Brasil, - com destaque para a região Nordeste - os folhetos de cordel podem ser concebidos como um discurso da realidade que contribuem para a construção de uma série de representações de um determinado período histórico. Os cordelistas possuem como uma de suas práticas, a produção de versos rimados que trabalham questões relacionadas ao cotidiano, que referem-se à vida, aos sentimentos e emoções, à fé, à história e à política. Os cordéis são impressos e divulgados por meio de folhetos ilustrados por xilogravuras, receberam esse nome pois eram comercializados em Portugal, nos mercados e feiras, pendurados em cordões.



Cordéis são artes, expressões e pulsões do dia-a-dia. Estão ligados a "invenção do cotidiano". Podemos perceber nos cordéis aspectos que constroem as multiplicidades de uma cultura. Pertencem ao que Certeau chamou de "arte de fazer", técnicas de produção popular consuetudinárias geradora de uma antidisciplina em relação a uma estruturação social hegemônica e a um sistema cultural erudito (CERTEAU, 2008). Figuram-se como uma possibilidade de ler e ouvir diferentes dos textos que consideramos convencionais. Nesse sentido, entendemos os folhetos de cordéis como documento histórico, como narrativas que exprimem uma face das vivências sociais, políticas e culturais de cada cordelista. 


Os textos literários configuram como um material que possibilita uma multiplicidade de leituras, principalmente por sua variedade de significados para compreensão dos valores sociais, do espaço cultural e das práticas subjetivas do homem no tempo (PASAVENTO, 2012). Cabe ao historiador ter em mente que suas fontes são um produto de seu tempo, que foi produzida com base nos objetivos de seus autores (FERREIRA, 2009), passou por um processo de tomada de decisão por parte dos arquivistas, e que passa por um processo de violação pelo presente e as leituras de mundo do pesquisador. 


Durante a década de 1970, com a ampliação das possibilidades de problemas, objetos e abordagens da história, houve um estímulo ao uso de novos documentos, em suportes variados, como: a escrita, os sons e as imagens. Com a expansão das fontes historiográficas, a História passa a adotar uma perspectiva interdisciplinar (FERREIRA, 2009), que passa, por exemplo, pela literatura de cordéis. Salientamos que no uso dos cordéis o que se sublinha (LUCIANO, 2012) não é a restauração de um fato em si, mas de um gênero literário embebido nas subjetividades do autor e dos leitores. Nesta medida, as obras literárias apresentam-se como uma alternativa de fonte para elaboração das narrativas historiográficas.


É possível detectar nas produções dos cordelistas uma leitura de seu tempo sobre um acontecimento ocorrido no pretérito, ou contemporâneo a sua produção, como por exemplo, ao interpretarem alguns fragmentos ocorridos em Juazeiro no século XIX. Nos versos a seguir são fragmentos do cordel intitulado A História da Beata Maria de Araújo e do Milagre de Juazeiro podemos visualizar essa questão. O cordelista Hamurábi Batista, apresenta uma biografia em versos da Beata Maria de Araújo, a personagem central não é fruto da ficção, mas um agente da materialidade, uma personagem relacionada ao episódio fundante da hierofania de Juazeiro:


E no ano de 89 

Salvo engano, se escreveu 

No decorrer da quaresma 

O fenômeno aconteceu 

A hóstia virou sangue 

E outras vezes sucedeu 


Durante aquela quaresma 

Todo dia acontecendo 

Na comunhão da Beata 

Quarenta vezes vertendo 

Em sangue a hóstia sagrada 

Na se convertendo 


Os acontecimentos abordados pelo cordelista, ocorreram no final do século XIX, e atraíam a atenção de um considerável número de fiéis, pessoas vindas de várias partes do país, especialmente da região Nordeste, e de membros de vários setores da sociedade (PAZ, 2011). O suposto milagre no Juazeiro atraía a atenção não apenas daqueles que acreditavam na transubstanciação da hóstia, mas, também, de jornalistas, políticos, médicos e especialmente da Igreja Católica.


A política dominante 

Na Igreja inquiridora 

Julgava que a Beata 

Não fosse merecedora 

Submetendo-a torturas 

De forma avassaladora 


A política à qual o cordelista faz menção, trata-se do processo de romanização da Igreja Católica durante o século XIX, com Concílio Vaticano I (1869-1870) que entre outros temas, trata da recristianização da Igreja, e representava uma busca pela centralização do poder clerical aos moldes da Santa Sé (PAZ, 1998); Assim sendo, as manifestações de uma religiosidade que fugia aos padrões pretendidos pela Igreja deveriam ser combatidos. Para o Vaticano, manifestações como as que ocorriam em torno da Beata Maria de Araújo, precisavam ser controladas e exterminadas (GAETA, 1997), sob o risco de perdas concretas às estruturas hierárquicas, sejam elas de ordem econômica, política ou religiosa. Os acontecimentos em Juazeiro do Norte, era, portanto, movimento contrário ao empreendido pela Igreja naquele momento.


É necessário ao historiador compreender que as fontes, como os cordéis, são representações sobre o passado, são marcas de historicidade, símbolos de algo que teve lugar no tempo. Cabe ao historiador a função de contextualizá-la e relacioná-la aos vários significados da realidade que lhe comporta. 


A literatura constitui uma fonte privilegiada para história, possibilita ao historiador acessar o imaginário, dialogar com imagens sensíveis do mundo, singularidades que outras fontes não lhe proporcionariam. O diálogo com o texto literário atua como suporte fundamental para que o historiador direcione-se para outras fontes que até então ainda não havia visualizado. A literatura é uma possibilidade de conhecimento do mundo, os textos literários, como os cordéis, qualificam-se como uma fonte fertíl, os versos de um cordel pode figurar uma alternativa valiosa para o acesso ao fragmento do pretérito. 


* Karina Melo é formada em História pela Universidade Federal do Ceará - UFC (2020). Foi estagiária de história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 2017 à 2019. Historiadora vinculada à Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor) no Projeto de Regularização do Patrimônio Cultural de Fortaleza.  Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM/UFC), e do Grupo de Estudos História e Documento: reflexões sobre fontes históricas (GEPHD/UFC). Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa da História das Práticas da Saúde e das Doenças (GEPHPSD/UFPA).


REFERÊNCIA 


CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 14ª Edição. Petrópolis: Vozes, 2008.

FERREIRA, Antonio Celso. A Fonte Fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi; DE LUCA, Tania Regina (orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2009. p.61-91.

LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro. São Paulo: Editora Luzeiro, 2012, p. 57. 

PAZ, Renata Marinho. As Beatas do Padre Cícero: Participação feminina leiga no movimento sócio-religioso de Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte: Editora IPESC/URCA. 1998.

PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: A Igreja Católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 3ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 107.

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