Educação, família e autoritarismo no Brasil
Bianca Nascimento de Freitas*
Após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o país tem passado por uma fase de cortes em seus serviços básicos como educação e saúde, além de uma crescente perseguição ideológica com a atuação de movimentos conservadores como o Escola Sem Partido (ESP) e sua proposta de um ensino, dito neutro, que virou, inclusive, projeto de lei. O Escola Sem Partido obteve notável interesse entre a classe política conservadora, mesmo após vários estudiosos da educação já terem apontado o projeto como inconstitucional, uma vez que contradiz a escola como espaço de formação cidadã. Contudo, desde o início do governo de Jair Bolsonaro, tem ocorrido uma abertura maior para as tentativas de implementação do ESP e de propostas semelhantes pelo Brasil afora.
As motivações das famílias que apoiam o ESP são as mais variadas e vão desde crenças religiosas e insatisfação com o ambiente escolar até a mais famosa: o medo de uma suposta doutrinação esquerdista nas escolas, ideia batida, mas que tem se repetido em vários momentos da história do Brasil. Em todo o caso, independentemente da justificativa apresentada pelos defensores do projeto, é importante percebermos que propostas como essa, apresentam propósitos muito bem definidos e se referem ao controle sobre o outro e a imposição de padrões sociais por meio da educação.
Esse controle não diz respeito somente ao entendimento sobre a prática de educar, mas também sobre os sujeitos que fazem parte desse processo. Pensar normas de conduta para a criança e a família, discipliná-las e criar modelos para elas, evidenciam como estes conceitos estão profundamente interligados, uma vez que a própria construção histórica da ideia de infância está relacionada a posição das crianças no ingresso da vida escolar e nas formas de tratamento no interior da família burguesa (ARIES, 1981).
Paulo Feire nos diz que a repetição da prática de uma educação que não é libertadora gera em determinado momento da experiência de vida do oprimido, uma atração pelos padrões de vida do opressor, numa tentava de se igualar a ele. Partindo dessa ideia, podemos entender que famílias ou escolas conservadoras tendem a formar cidadãos conservadores, ao passo que famílias ou escolas com posicionamentos e ideias libertadoras tendem a formar cidadãos emancipados. Nesse segundo caso, por que ainda há na sociedade brasileira tanto medo de uma educação libertadora?
Talvez a nossa experiência com tantos períodos autoritários explique essa pergunta, bem como as várias polêmicas sobre doutrinação nas escolas, e os movimentos conservadores como o ESP que, em nome da família brasileira, defendem que os pais devem escolher a que tipos de debates seus filhos podem ou não ter acesso. Isso nos chama atenção para um período recente de nossa história, em que direitos foram cerceados e a liberdade foi fortemente atingida. No Regime Militar, além da censura direta imposta em decretos e leis, a opressão também se construía na manutenção da desigualdade e na exclusão do que se distanciava dos padrões socialmente impostos.
Haja vista a importância de estudos sobre a educação no Regime Militar, resolvemos apresentar aqui o estudo de um instrumento utilizado como suporte para a educação não necessariamente formal e que unia escola e família: as enciclopédias. Populares no Brasil especialmente a partir dos anos 50 do século XX, elas eram vendidas de porta em porta ou oferecidas nas escolas, trazendo, além dos conteúdos escolares, temas relacionados a tudo o que fosse entendido como pertencente ao universo familiar. Elas eram também vistas como símbolo de conhecimento e cultura entre as famílias de classe média e carregavam consigo valores, modelos e regras que validavam perfis sociais utilizando a educação como meio de atualizar e preparar os brasileiros para o Brasil moderno.
Após o golpe civil-militar de 1964, ao mesmo tempo em que ocorreu a censura às manifestações culturais de cunho alternativo e contestatório, houve também uma grande explosão das publicações didáticas, facilitadas por iniciativas dos governos militares e o desejo de expandir uma doutrina que firmasse e legitimasse o golpe. É nesse momento que um dos maiores grupos de comunicação do país, o grupo Abril, começa a se destacar com o desejo de Victor Civita, dono da editora, em inovar, editando títulos nacionais, com destaque para as enciclopédias em fascículos (MARTINS; LUCA, 2008).
Entre tantas publicações editadas pela editora Abril, destacaremos aqui a enciclopédia Nossas Crianças, publicada em 1970 em uma “coleção de 90 fascículos, cada um com 16 páginas internas, mais 4 páginas de capa”. A enciclopédia unia os mais diferentes temas relacionados aos cuidados com a criança, desde noções básicas de higiene até a pediatria para ajudar “pais e educadores a enfrentarem os pequenos problemas do dia a dia”. Ao final, Nossas Crianças formava 6 volumes de 15 fascículos, tendo ainda um volume a parte, o sétimo, formado pelas 4 páginas de capa, intitulado O desenvolvimento da criança, analisando todas as transformações que ocorrem desde a concepção até a puberdade[1]. Nossas Crianças surge reforçando o compromisso assumido pela Abril, de abranger o máximo de conteúdo possível sem perder o rigor cientifico. Esse último quesito era importante, sobretudo em virtude dos novos padrões culturais da vida urbana para os quais as crianças deviam ser preparadas.
Na apresentação do volume 1 de Nossas Crianças, Victor Civita descreve a criança como um ser pequeno, estranho, maravilhoso e frágil que precisa de cuidados especiais. Para ingressar na vida adulta ela deveria ser cautelosamente formada para obter sucesso, e acrescenta: “cuidar, compreender e educar são missões que competem principalmente aos pais.”[2] Nesse sentido, há, para o empresário, um grande peso da família na educação das crianças, na formação de seus caráteres e na construção de um futuro promissor. Contudo, no ano seguinte, a lei a Lei nº 5.692, instituída em 11 de agosto de 1971 e que fixava Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus, iria afirmar que, sozinhas, as famílias não dariam conta de educar o cidadão moderno, cabendo à escola essa função.
Ainda assim, Victor Civita fazia questão de salientar que a Abril Cultural se satisfazia em oferecer aos brasileiros uma obra como Nossas Crianças. Na apresentação da edição de 1970, Civita diz que a editora se orgulha de estar auxiliando os pais a cuidar e educar os filhos, pois assim, estavam “ajudando a moldar homens sadios e bem formados para a maior grandeza do Brasil de amanhã”. Isto é, as crianças estavam sendo educadas com o propósito de integrar e reforçar o perfil de sujeito ideal daquela sociedade conservadora.
Mas como isso se dava? Analisando o índice da enciclopédia, observamos que ela é dividida por temas, tais como: a criança problema, doenças infantis, higiene e crescimento, lazer, psicologia e vida escolar. Os temas não são incomuns, o que chama atenção é a distribuição deles. Assuntos como preguiça e indisciplina aparecem na seção vida escolar, enquanto questões como homo afetividade, deficiência intelectual e física[3] aparecem na seção criança problema, em páginas amarelas destacadas ao lado de artigos com temas como delinquência, psicopatia e suicídio. Sobre o trato dos pais com as crianças com deficiência, Nossas Crianças afirmava que:
Em geral a criança retardada comporta-se de maneira rebelde quando vai ao médico ou ao dentista. Aos poucos, os pais precisam ensiná-la a ter uma conduta mais tranquila durante as consultas, usando elogios e recompensas quando ela colaborar.[4]
Percebemos que essas instruções se referiam menos à educação dessas crianças e mais ao seu adestramento com a finalidade de tentar disfarçar e esconder a realidade desses sujeitos. Todos os conteúdos de Nossas Crianças buscam indiretamente a formação de uma criança modelo, excluindo todos que destoam do arquétipo adequado e que ficam à margem das normas. Assim, a enciclopédia apresenta um padrão de criança e traz orientações aos pais que tentam encaixá-las nele por meio das instruções. Por sua vez, a normalização das crianças é atrelada a um padrão de família e a ausência desse equilíbrio familiar poderia levar a problemas entendidos como mais graves:
Daí a presença dos artigos referentes a chamada família moderna e sua relação com a escola, cujos conteúdos trazem a necessidade de se construir um lar em perfeito funcionamento, com todos os papéis familiares bem definidos e onde todos participam diretamente da educação dos filhos. Assim, o espaço domiciliar ainda recebe grande importância, com seus modelos familiares de pai e mãe ideais, podendo qualquer disfunção ocasionar distúrbios na sexualidade infantil ou outras adversidades, o que geraria uma vida de análise e tratamentos psicológicos.
É interessante ressaltar que grande parte desse cuidado com o equilíbrio familiar pesava mais sobre as mulheres, sendo bastante ressaltado que uma mãe desequilibrada emocionalmente poderia criar filhos agressivos e inquietos que tendem a repetir o seu descontrole. Ou ainda que as mães, que por ocasião de viuvez ou desquite, não conseguissem suprir o papel de disciplinadora do lar, função que caberia em grande parte ao pai, poderiam causar impactos negativos nas crianças. Nesse caso, quando da ausência paterna, a mãe deveria procurar preencher esse espaço com a presença de uma figura masculina, um tio, avô ou professor para que os meninos não crescessem sensíveis em excesso e desajustados nos espaços masculinos.[6]
Essa compreensão que preza pela imagem da família tradicional, ainda muito forte nos dias de hoje, era reforçada em vários fascículos de Nossas crianças e de outras publicações semelhantes não apresentadas aqui. A missão de preparar o cidadão para o Brasil moderno estabelecia padrões de classificação do que era normal e anormal, passando pela construção das crianças, mas também do entendimento sobre o que é considerado família e sobre como cada papel familiar deveria ser desempenhado. Não se tratava apenas de listar determinados assuntos por ordem alfabética, mas de classificá-los, dividi-los e dar visibilidade a determinados temas em detrimento de outros. A classificação não é uma ação aleatória, mas um exercício de poder, é estabelecer categorias e policiá-las e isso não é feito de qualquer modo: “toda ação social flui através de fronteiras determinadas por esquemas de classificação”[...] (DARNTON, 1986, p. 249).
A questão é: porque, ao invés de uma educação que vise a autonomia das crianças e adultos, ainda hoje surgem projetos como o Escola Sem Partido? E mais, por que propostas assim possuem tantos adeptos? Tais projetos só colaboram para a visão de uma educação cada vez mais conservadora, excludente e que não abre espaço para o pensamento crítico, anulando o que difere dos padrões sociais aceitos. A onda conservadora que tem se intensificado no Brasil desde o Golpe de 2016, e que pouco valoriza as diferenças e a socialização, só mostra o quanto ainda prevalecem a ignorância e a atração pelo autoritarismo em nosso país, bem como não são poucas as famílias que ainda vivem a ilusão de criar um padrão de sujeito ideal que, por sua vez, poderá seguir espalhando o ódio e a intolerância em nome dos cidadãos de bem.
* Doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará- UFC, mestra em História Social (2016) e graduada em História pela mesma instituição em 2011. É integrante do grupo História e Documentos: Reflexões sobre fontes, do Diretório de Pesquisa do CNPq. Professora da Educação Básica da Rede Municipal de Fortaleza (SME).
Referências Bibliográficas
ARIÈS, Phillippe. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa. São Paulo: Graal, 1986.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tania Regina de (Orgs). História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.
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