Iconografia anticomunista ou, com quantos quadros se produz o medo.
Alberto Rafael Ribeiro Mendes*
Pois, se de todas as paixões, a que sustenta mais eficazmente o respeito às leis é o medo, então deveríamos nos perguntar como ele é produzido, como ele é continuamente mobilizado.
Vladimir Safatle.
É verdade, o medo de uma época pode ser analisado a partir dos mecanismos securitários postos em prática, pelo investimento em técnicas de defesa, vigilância, monitoramento; grandes montantes de capital são, sobretudo em nossa época, destinados à produção e aquisição de armamentos sob o argumento da proteção da nação, do povo, da democracia, da soberania. Muros, cercas, barreiras de contenção, controle dos caminhos que conectam as nações constituem, talvez, a nossa crônica contemporânea do medo da invasão, da agressão vinda de fora, pavor do estrangeiro, do imigrante, do outro.
Também o pavor social se manifesta numa crença desmedida na existência de um risco, de uma insegurança, de uma vulnerabilidade e, no limite, de um inimigo sempre à espreita, seja real ou imaginário, seja natural ou técnico, macro ou microscópico, humano ou inumano, distante ou próximo. Seja como for, o medo constitui-se sempre a partir de um “objeto determinado ao qual se pode fazer frente” (DELUMEAU, 2009, p. 33), pressupõe sempre a presença de um objeto enlouquecedor, que alimenta o desejo de inimigo, o desejo de apartheid e a fantasia de extermínio que caracteriza nossa época[1].
Entre nós, pelo menos desde 1917, um medo nos invade e nos espreita: é o medo do comunismo, produto estrangeirado, importado pelas elites brasileiras, acostumadas a consumir e a imitar o que vem de fora. Encontrou terreno fértil no país e, de tempos em tempos, esse fantasma aparece-nos em tons muito mais ameaçadores, provocando ondas anticomunistas ferrenhas[2], despertando o pavor e a paranoia de alguns setores da sociedade, notadamente daqueles que se veem ameaçados do seu lugar e do seu status social. Vemo-lo plenamente desperto agora. Ou não foi também o fantasma do comunismo que elevou ao poder um presidente negacionista, amante da ditadura e defensor da tortura?
Há muitos crentes dessa fantasia. E há até os que acreditam na “maldade” comunista que nos introduziu um vírus chinês. A ficção se torna realidade, ela está no governo. Paulo Guedes, o ministro da Economia, não esconde sua crença ao afirmar que “o chinês inventou o vírus”[3].
O enraizamento dessa ficção da “maldade comunista” encontrou na iconografia terreno fértil. Quero apresentar apenas um exemplo, que nos vem de 1984, e está relacionado ao “medo” dos setores latifundiários da possibilidade de realização de uma Reforma Agrária no país, e, especialmente, ao movimento das ocupações de terras e do surgimento do MST. O documento é uma revista em quadrinhos, de autoria da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP. A HQ foi intitulada Agitação social, violência: produtos de laboratório que o Brasil rejeita.
A revista apresenta treze pequenas estórias, com enredos focados na depreciação, negação e combate ao trabalho das CEBs, à Teologia da Libertação, às ocupações de terras, à CPT, à reforma agrária, tudo isso sob o pano de fundo do “risco” do comunismo, o grande projeto, segundo a revista, escondido nessas atividades da Igreja Progressista no Brasil.
Vê-se na capa da HQ o laboratório das CEBs, onde religiosos da Teologia da Libertação, entre eles “Irmã Sabina, uma “freira conscientizada”, manipulam substâncias explosivas, incendiárias. Note-se a presença dos agentes envolvidos nesse projeto: a CNBB, o PCB, o PC do B, misturados aos ideais marxistas, à defesa das greves, da reforma agrária, das “invasões de terras”.
O monstro que aparece no fundo é a representação das CEBs, é “o ser misterioso que tantas ameaças acumula sobre o Brasil”, diz a revista. Numa das estórias, que se propõe revelar quem é o grande responsável pelas agitações sociais, no campo e na cidade, o monstro da CEB aparece dominando os outros movimentos sociais, as pastorais da terra, operária, os grupos de jovens.
Noutra sequência, intitulada Teologia da Libertação, a revista trata da ideologia discutida e formulada nas CEBs, indicando um modo próprio de interpretar a doutrina cristã católica, que seria, na verdade, uma deturpação dessa doutrina, uma adequação nos moldes comunistas de ver o mundo, mais uma vez enfeixado pelo signo da maldade e da violência. A boa nova que habita a bíblia da CEB, vê-se no quadrinho, é um revólver. Aliás, essa imagem das armas associadas ao projeto da Teologia da Libertação também compõe o desenho que forma o título da estória e a cena da reunião, que tem Fidel Castro e Che Guevara nos quadros na parede. A alusão ao projeto explosivo também está presente nas caixas TNT em que alguns sujeitos estão sentados.
A mensagem da revista é direta, os teólogos da Teologia da Libertação buscam promover uma Revolução do tipo Marxista-Leninista.
Trata-se de produção e distribuição do medo, reintroduzindo no cenário brasileiro antigas fórmulas de afetação política, sustentadas pela ideia da iminência de um avanço comunista, especialmente no campo, tão eficazes no golpe militar que instalou a ditadura militar em 1964. Na década de 80, com a retomada das lutas pela terra e da pauta da reforma agrária, o patronato rural atualiza o velho argumento da desproteção da propriedade privada, da iminência de uma guerra, do avanço de um inimigo, agora personificado nos sem-terra. O medo como afeto político foi um poderoso aliado nesse trabalho de detração das lutas; terror que se manifestava na violência dirigida aos trabalhadores rurais e seus aliados, mas que também foi criado no plano discursivo e visual, dirigido ao corpo social, e, de modo especial, ao governo de transição, para quem um recado especial era dirigido: o fantasma da reforma agrária assombra o país e ameaça a ordem.
É fato, o anticomunismo invadiu nosso presente, talvez estejamos em nova onda, sustentada por uma parcela reacionária da população brasileira, a mesma que foi às ruas apoiar o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff do poder em 2016; a mesma que, volta e meia, veste verde-amarelo para pedir a volta da ditadura e do AI-5. O anticomunismo a serviço do golpe, como no pré-64. Se quisermos compreender os arroubos autoritários de nosso cotidiano, se desejamos entender a paranoia do medo comunista, ficção que serve aos interesses golpistas, precisamos, uma vez mais, reintroduzir no discurso histórico essa iconografia política, porque ela constitui parte do “fantasma comunista”, que nos parece tão real.
* Sobre o autor: Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da UFC (2017). Graduado em História pela Universidade Federal do Ceará - UFC (2010). Especialização em História Afrobrasileira e Indígena, Faculdade Ateneu (2013). É integrante dos Grupos de Pesquisa História, Memória, Natureza e Cultura (UFC) / História e Documento: Reflexões sobre fontes históricas (UFC). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre violência no campo no Brasil republicano, com atenção especial para a atuação de setores ligados aos trabalhadores rurais como o MST e a CPT na luta contra a violência e em favor da Reforma Agrária. Professor da Educação Básica do Estado do Ceará, lotado na EEM Júlia Alenquer Fontenele, Pindoretama-Ce.
Link para acessar a HQ:
Referências Bibliográficas
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
GINZBURG, Carlo. Medo, reverencia, terror: quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917 1964). Niterói, Eduff, 2020.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
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