O documento fotográfico: entre o realismo e as indagações



Jeferson de Castro Silva*

As imagens vêem com os olhos que as vêem.

José Saramago



    É comum e vastamente difundida a noção do pensador chinês Confúcio (551 a.C. - 479 a.C) de que “uma imagem vale mais que mil palavras”. Sobretudo quando as fotografias estão envolvidas nesse meio.

    O tratamento dado às fotografias, por muitas vezes, é dotado de uma confiança e ingenuidade sobre a “verdade” do que se vê, haja vista a imagem fotográfica possuir uma naturalização de “realismo”. Naturalização, que desde o surgimento da produção fotográfica moderna com seus processos técnicos e químicos de captação, revelação e reprodução, compõem este objeto enquanto documentação e expressão.

    Ao passarmos o olhar sobre esses objetos desfrutamos da sensação de estar mediante o ocorrido em sua totalidade e veracidade. O que pode levar ao ato de substituição da análise pela aceitação total do que se olha sem os devidos questionamentos. Mas será mesmo que com as imagens fotográficas podemos colher a verdade e a realidade em sua pureza?

    Para Reinhart Koselleck[1], ao falarmos de uma emanação do real pura com esse “realismo” a qual as fotos, assim como outras documentações, supostamente teriam, estamos diante de um realismo ingênuo. Realismo que busca manifestação da verdade em seu estado puro e sem deturpações em uma espécie de espelho dos acontecimentos retratados. Como apresenta o autor:

Toda fonte ou, mais precisamente, todo vestígio que se transforma em fonte por meio de nossas interrogações nos remete a uma história que é sempre algo mais ou algo menos que o próprio vestígio, é sempre algo diferente dele. Uma história nunca é idêntica à fonte que dela dá testemunho. Se assim fosse, toda fonte que jorra cristalina seria já a própria história que se busca conhecer. (KOSELLECK, 2006, p. 186)

    É consenso entre os estudiosos, no que diz respeito à fotografia, que os reflexos dos espelhamentos são muito mais da bagagem cultural e interpretativa do fotógrafo do que a verdade/realidade límpida do que foi registrado. As fotografias mostram o que mostram permeadas por pressupostos e sobre determinações de quem as produz e de quem as enxerga. Logo, segundo Boris Kossoy:



O registro visual documenta, por outro lado, a própria atitude do fotógrafo diante da realidade; seu estado de espírito e sua ideologia seu estado de acabam transparecendo em suas imagens, particularmente naquela que realiza para si mesmo enquanto forma de expressão pessoal. (KOSSOY, 2014, p. 46)





O uso como documento

    O caráter multifacetado e polissêmico desse tipo de documentação é algo que deve ser sempre levado em consideração. Multifacetados e polissêmicos por englobarem diversas manifestações, ligações com diversos outros tipos de documentações e por serem passíveis de múltiplas interpretações e sentidos no decorrer do tempo. Envolta dos olhares de quem produz e quem aprecia/analisa existe toda uma memória, um imaginário simbólico e uma ideologia expressada. O registro fotográfico é um objeto sensível/intencionado, para além do ato registrar, perante uma dimensão de sensibilidade evocativa

    Dado isso, é importante a consciência de que a imagem e a escrita são formas de expressões e comunicações diferentes, mas que podem acrescentar ou desmentir uma à outra.



Assim como a palavra é a expressão de uma ideia, de pensamento, a fotografia - embora se trate de um imagem técnica produzida por meio de um sistema de representação visual - é também a expressão de um ponto de vista, de uma visão particular de mundo de seu autor, o operador da câmera. (KOSSOY, 2014, p. 54)



    Imagens e palavras expressam e comunicam de maneiras diferentes, contudo estão ligadas intrinsecamente pela capacidade conectiva e disruptiva. Assim, as fotografias não falam mais que mil palavras, elas falam de maneiras diferentes e intercaladas entre o signo visual e escrito. É necessário um olhar bem atento e que faça ramificações sobre esses objetos fragmentários. Quais são as possibilidades em torno desses documentos? Quais os problemas históricos que os documentos fotográficos podem gerar?

    As fotografias estão no presente, mas são intimamente ligadas com as coisas ou as pessoas do passado das quais representam. O que chega até nós, e é transformado em fonte, é o ruído dos ecos do tempo pretérito. Trabalhar com esse tipo de documentação é muitas vezes, é mais do que nunca, um trabalho de catalogação e fabricação do próprio objeto como fonte.

    O registro fotográfico, por mais que se ponha como fonte transparente de captação e expressão do real, ainda é dotado de turvações pelo próprio processo de captação, manipulações posteriores, usos e as memórias contidas em torno dessas imagens. É, antes de tudo, representação montada e interpretada a partir de uma realidade do que todo o real.

    Desejar que as fotos contenham todo o passado condensado e um único fragmento, é também desejar que o documento fale sobre o passado por si só, assim, retirando suas condições multifacetadas, polissêmicas e fragmentárias.

    O ato de fotografar é em princípio um exercício de escolha sobre um certo tema e manuseamento do real a partir da tecnologia, enquadramentos e intenções do fotógrafo ou da pessoa que fez a encomenda do registro. Os testemunhos visuais permanecem associados às suas circunstâncias de produção. A imagem fotográfica é o resultado de um desejo intencionado e de uma manipulação com finalidades pré-determinadas ou não. Os procedimentos e os contextos históricos em torno do que se enxerga, em tal documentação, são fatores que devem sempre ser levados em consideração.

    A iluminação, os ângulos, os processos químicos da revelação, e a própria escolha do que entra ou sai no ecrã do aparelho fotográfico, no momento da captação, são alguns dos exemplos de manipulações. Logo, da mesma forma que as fotografias mostram elas também ocultam. Os próprios atos de falsificações, modificações, tratamentos, etc. já são elementos bastantes relevantes, pois a indagação da necessidade de tal ato é por si própria uma questão a ser feita. São rastros dos usos.

    Não é somente o monocromatismo preto e branco entre mentiras e verdades. Os pormenores contidos sob a produção e intenção dessas imagens compõem os vários tons de cinza, e outros cromatismos, que é a paleta interpretativa do trabalho com documentos visuais. O cruzamento entre a imagem, a escrita, a oralidade e entre outros, é fundamental. Quais devem ser as ações dos pesquisadores diante dessas imagens?

    As seguintes indagações, no que corresponde ao uso das imagens fotográficas como documentação para a pesquisa histórica e demais áreas, podem ser de grande ajuda na análise: que tipo de imagem/documento tenho em mãos e/ou olhos? Quando essa imagem foi feita e como ela pode ser conectada ao contexto histórico? Quais os processos usados para a produção dessa imagem? Quem é o autor e/ou quem encomendou a produção da imagem? Quais os motivos daquela imagem ter sido feita? Aonde essa imagem foi veiculada? Existem outras imagens anteriores ou posteriores que possam fazer ligações ou encontrar manipulações? Quais detalhes contidos na imagem podem direcionar a análise? O que as imagens dizem e deixam de dizer?



Sobre manipulações

    Um exemplo dos usos das fotografias para representação de um ocorrido e que pode se encaixar muito bem nos questionamentos sobre essa documentação, postos acima, são as fotografias em torno do cangaço.

    As fotografias das mulheres ferradas pelo cangaceiro Zé Baiano são bem conhecidas pelo nível de horror e crueldade a qual essas mulheres foram submetidas. Chegando a repercutir em jornais internacionais da época, como o parisiense Paris-Soir na edição de 1 de agosto de 1938 (Figura 1 e 2). Episódio da história do cangaço repleto de versões e usos, como a consagração do cangaceiro Zé Baiano como ferrador de mulheres por inimizade, cabelo ou roupas curtas. Essas versões foram sendo refutadas com um estudo mais sistemático e aprofundado.






Figura 1: Capa do Jornal Paris-Soir (1 de agosto de 1938)







[Autor e data desconhecidos]











Figura 3:Autor desconhecido. Maria Marques (já idosa) ferrada por Zé Baiano. Data desconhecida.

Fonte: Imagem retirada da internet






Figura 4: Autor desconhecido. Montagem feita para representar as crueldades dos cangaceiros. 1929.

Fonte: Imagem retirada da internet



    Ao observar as demais fotos, de autorias desconhecidas, é notório alguns aspectos que devem ser levados em consideração. Já é bem conhecido que a imagem da Figura 4 é uma montagem feita para veicular na imprensa da época as violências cometidas pelos cangaceiros. Segundo Ricardo Albuquerque, a manipulação fotográfica foi “[...] feita para ilustrar essa crueldade: as iniciais de Zé Baiano foram inseridas sobre a fotografia original”. (ALBUQUERQUE, 2012, p.75).

    É importante ressaltar quais os aspectos podem levar a descoberta dessa manipulação. Alguns pontos, como o entorno da sigla “JB” da Figura 4 que apresenta texturas e sombreamentos muito diferentes das fotos das demais. As letras “JB” aparecem de forma diferente, pois a fonte usada no ferro para ferragem difere da fonte das demais fotos (Figura 2 e 4). Outro fator que se nota na Figura 3 em relação a Figura 4, são que as letras da sigla estão separadas e não juntas como a Figura 4 apresenta. O que indica que a matriz de ferro é diferente nesse caso. Cabe salientar, que esse tipo de manipulação era algo bem comum, seja feita a raspagem direta nos negativos ou na imagem depois de revelada e reproduzida com a manipulação sobreposta.

    Percebe-se com essa análise das imagens e textos, que apesar dos relatos e diversas outras imagens produzidas em torno do cangaço, ainda se fez necessário a manipulação de uma imagem com a finalidade de representar um dos aspectos em torno desse movimento. Além do fato dessa imagem ter sobrevivido até os dias de hoje como uma das mais conhecidas. Nota-se a produção e reprodução de imagens-imaginários e memórias dos cangaceiros a partir dessas fotografias.



O risco e o gosto pela documentação fotográfica



    Visto esses aspectos, cabe pensar que para além da possibilidade de fazer uma História da fotografia, quando se fala em usos e interpretações de imagens fotográficas do tempo passado, não se deve esquecer que além de ser uma fonte produzida com processos e histórias próprias, é também um objeto portador de indícios sociais e culturais de seu tempo, uma memória em seu entorno e que se constitui por meio da interpretação do que se enxerga. Como afirma Ulpiano T. Bezerra de Meneses:



Não se estudam fontes para melhor conhecê-las, identificá-las, analisá-las, interpretá-las e compreendê-las, mas elas são identificadas, analisadas, interpretadas e compreendidas para que, daí, se consiga um entendimento maior da sociedade, na sua transformação. (MENESES, 2003, p.27).



    Fazer uma história social/cultural com a fotografia é indispensável, haja vista esses documentos serem potencialmente e corriqueiramente usados na representação de fatos ocorridos, com possíveis interpretações e direcionamentos interpretativos que essas imagens, juntamente com os textos, podem ter na sociedade.



As fontes fotográficas são uma possibilidade de investigação e descoberta que promete frutos na medida em que se tenta sistematizar suas informações e estabelecer metodologias adequadas de pesquisa e análise para a decifração de seus conteúdos por consequência, da realidade que os originou. (KOSSOY, 2014, p. 36)



    Vivemos em uma sociedade, em especial a ocidental, que está intimamente ligada às imagens, principalmente a fotográfica. Formamos nossas vitrines sociais através de nossas imagens. A célebre constatação de que “hoje, tudo existe para terminar numa foto'', de Susan Sontag (2004), é ainda fundamental.

    Não nos deixemos levar por uma ingenuidade de achar que as fotos são neutras ou só expressam aquilo que é visível em sua totalidade. Muitos menos usá-las como mera ilustração de um ocorrido. A capacidade de confusão entre a realidade das fotografias e a realidade a qual interpretamos por meio de outros modos é latente. Uma imagem pode muito bem ter sido feita para usos afetivos, gatilhos emocionais e direcionamentos interpretativos (como as fotos das mulheres ferradas). O exercício da análise é sempre necessário.

    As imagens podem ser uma ponte ruinosa para um ponto do passado mediante um fragmento altamente manipulável. Há sempre os riscos no atravessamento desse caminho. Contudo, elas podem ser um ponto chave para uma narrativa ao se conectar com diversos outros fragmentos. É necessário saber onde se pisa e estar em boa companhia teórica e metodológica nessa travessia.

    O gosto pelo uso e análise dos documentos fotográficos, assim como os demais, está no permanecer a todo instante passível de alguma surpresa no processo de cruzamento das fontes. Uma imagem, na sua característica multifacetada, pode muito bem concordar e desmentir um escrito e outra imagem na medida em que se pode cruzar com diversas outras fontes. A surpresa pode residir justamente onde os signos escritos não alcançam em questões emocionais o signo fotográfico, pois as “[...] imagens podem auxiliar a posteridade a se sintonizar com a sensibilidade coletiva de um período passado” (BURKE, 2017, p.51).

    É no sorriso inesperado de alguém e/ou nos arrepios causados por lembranças evocadas de nossas vivências pela imagem que se olha em torno de uma memória reminiscente. É ter em mãos e olhos uma segunda realidade[2] objetificada e fragmentada, partindo de uma interpretação e vontade de outro alguém. É no trabalho com as fotografias no sentido da exploração das potenciais descobertas diante das possibilidades.

    Temos aqui um objeto em sua dimensão estética, ética e memorial que requer todo o cuidado metodológico, assim como os demais tipos de documentações/fontes requerem. A prática da desmontagem e montagem - em uma espécie de dilaceramento das lacunas para se obter mais lacunas - desses objetos enquanto documentos é crucial, pois é necessário, mais do que nunca, permanecermos atentos(a) às entrelinhas e não-ditos, dedicando um tempo generoso para a análise.







Fontes:



PARIS-SOIR, Paris, n. 5.486, 01 de agosto de 1938. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k76441862/f1.item



O CANGAÇO NA LITERATURA. Zé baiano e o ferro. Youtube. Br. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FNNHMU_t0E0&t=632s





Referências Bibliográficas



ALBUQUERQUE, Ricardo (Org.). Iconografia do cangaço. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.



BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre fotografia. Trad: de Júlio Castañon Guimarães. 7. ed. Rio Janeiro: Nova Fronteira, 2018.



BURKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica. Tradução Vera Maria Xavier dos Santos. – 1. ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2017.



CERTEAU, Michel de. A história, ciência e ficção. In: _____. História e psicanálise: entre ciência e ficção. Trad: Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 45-68, 2016.



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________________. Diante da Imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013



________________. Diante do Tempo: História da arte e anacronismo das imagens. Tradução: Vera Casa Nova e Márcia Anexo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015.



GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ______. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 17



KOSELLECK, Reinhart. Ponto de vista, perspectiva e temporalidade: contribuição à apreensão historiográfica da história. In: ______. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.



KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.



________. Realidades e ficções na trama fotográfica. 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2016.



MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: Fotografia e História. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n °. 2, 1996, p. 73-98.



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SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.



______________. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.



MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. Rev. Bras. Hist. [online]. 2003, vol.23, n.45, pp.11-36.



*Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará, educador para patrimônio e agente cultural pela Universidade Aberta do Nordeste da Fundação Demócrito Rocha. Foi bolsista CAPES no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID História e Sociologia) e estagiário arte-educador, mediador e facilitador de exposições no Museu da Fotografia Fortaleza. Atualmente é bolsista do Programa de Promoção da Cultura Artística da Secult-Arte/UFC, atuando na Casa de José de Alencar como educador para patrimônio.






[1] Ver: KOSELLECK, Reinhart. Ponto de vista, perspectiva e temporalidade: contribuição à apreensão historiográfica da história. In: ______. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.


[2] Sobre o conceito de segunda realidade na fotografia, ver: KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014. e ________. Realidades e ficções na trama fotográfica. 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2016.

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